Uma dança dentro de uma dança; um vídeo dentro de um vídeo; um vídeo-dança; um plano-sequência; o uso de metalinguagem. Se você não sabe do que eu estou falando então assista a esse vídeo aqui e depois vamos conversar sobre ele.
Depois de um tempo sem atualizações preparei um material aqui para voltarmos a conversar um pouco sobre dança e, por que não sobre criatividade na dança? Para começar, escolhi falar desse vídeo aqui, que publiquei no ano passado, chamado Inception BellyDance.
Em maio (ou junho) de 2020, com a pandemia de covid-19 e todas as restrições que essa realidade provocou, como o fechamento de teatros, dos demais espaços culturais e das escolas de dança, muitos artistas e professores tiveram que se adaptar para sobreviverem a essa mudança drástica. Eu, como bailarina e professora de dança do ventre, tive que migrar rapidamente para as aulas on-line e trocar a plateia pelo público virtual. Para ajudar os artistas que sofreram perdas financeiras, foram criadas algumas iniciativas como festivais on-line, para incentivar a continuidade da produção artística tanto para os artistas quanto para o público, para assistirem em casa no período de isolamento.
A ideia
A criação do Inception BellyDance veio a partir da proposta do Festival Up, que incentivava artistas de diversas áreas a produzirem suas apresentações em vídeo e pagava um pequeno prêmio em dinheiro para os artistas que fossem selecionados pela curadoria do festival. As regras eram simples: para incentivar o distanciamento social, o “fique em casa”, o regulamento pedia que o vídeo fosse gravado no ambiente doméstico; além disso, pedia que o vídeo fosse gravado na posição horizontal com o celular, acredito que para facilitar a participação de mais pessoas e democratizar o festival; e pedia também atenção para não utilizar trilha sonora com direitos autorais, que consequentemente pudessem resultar em algum problema para a exibição do vídeo pelo festival. As regras do festival deixavam implícitos alguns temas: a mudança do espaço cênico dos palcos para as casas dos artistas, a própria pandemia, a quarentena etc. Com esse regulamento e com esses temas em mente, eu e o Leo Ferreira começamos a pensar no que iríamos produzir.
Conceitos e referências
Como se tratava de um festival de vídeos e com as temáticas da quarentena implícitas, imaginamos que haveria muita coisa experimental e um certo nível de exigência para a seleção dos trabalhos, então aproveitamos a oportunidade para exercitarmos a criatividade e fazermos algo diferente de apenas um vídeo de dança do ventre realizado em um cômodo da casa. Depois de pensarmos por um tempo sobre como seria esse vídeo-dança, chegamos à seguinte questão: e se a performance de dança em vídeo, que o espectador eventualmente estivesse assistindo, se comunicasse com outros vídeos, outras telas dentro da apresentação? O uso da metalinguagem parecia ter tudo a ver com a ideia do festival, então fomos por esse caminho.
Ainda sem saber exatamente o que ou como seria feito, a comunicação entre os vídeos evoluiu para a ideia de um vídeo dentro de outro vídeo, o que nos remeteu ao conceito de Inception. Para quem por acaso não conheça, Inception (A Origem) é um filme americano de 2010 dos gêneros ficção científica e ação, escrito e dirigido pelo cineasta Christopher Nolan. No filme, o protagonista, interpretado por Leonardo Dicaprio, é um ladrão/espião especializado em roubar informações das mentes de seus alvos através dos sonhos; o ladrão e sua equipe utilizam uma técnica para que os sonhos sejam compartilhados e assim eles possam conscientemente participar e interferir nos sonhos das vítimas para extrair as informações que querem. A parte mais interessante é que dentro do sonho é possível usar a técnica novamente, dessa forma pode haver um sonho dentro de um sonho, criando assim 2 ou mais camadas de sonhos. No nosso trabalho, portanto, seriam 2 camadas de vídeo.
Um dos efeitos imediatos dessa ideia de camadas de sonhos de Inception é a confusão para distinguir o que é real e o que é sonho, confusão essa que nos remete a uma outra ideia, a da hiper-realidade. Buscando mais substância conceitual, também pesquisamos sobre a hiper-realidade, um conceito de filosofia contemporânea, que tem entre seus teóricos mais notáveis o filósofo e sociólogo francês Jean Baudrillard (autor que inspirou as irmãs Wachowski a criar o filme Matrix) e, que se caracteriza pela perda da habilidade de uma consciência de distinguir a realidade da fantasia. A maior parte dos aspectos da hiper-realidade se dá através da realidade por representação. Esse tema é uma discussão bem atual na medida em que os perfis das redes sociais, de certa forma se tornaram veículos de hiper-realidade em diversos níveis, pois seus usuários compartilham fotos e vídeos que costumam emular uma realidade perfeita, idealizada, e que, portanto, não tem correspondência no mundo real.
A trilha sonora
Com a parte conceitual estabelecida, faltava definir uma trilha sonora. As regras do jogo nos impediam de utilizar uma trilha com direitos autorais; como o vídeo seria publicado no YouTube, recorremos à própria biblioteca de trilhas sonoras gratuitas da plataforma. A biblioteca de áudios do YouTube tem uma boa variedade e é possível fazer uma busca utilizando filtros como o “humor” (calmo, alegre, dramático etc) ou o estilo (rock, pop, country etc). Apesar da variedade em geral, músicas com temas ou elementos orientais, próprias para a dança do ventre, são mais raras nessa biblioteca, mas acabamos por encontrar a música Djin, do artista Francis Preve. A trilha se encaixou bem; Djin é uma música moderna, com elementos orientais e uma atmosfera de mistério, que consideramos importante para o que queríamos fazer. Além disso, é válido notar que o título, Djin, pode ser uma referência à entidade sobrenatural da mitologia árabe, o “Djinn”, que em português, nós conhecemos popularmente como “gênio”. Na cultura ocidental um dos personagens mais conhecidos que representa o Djinn é o gênio da lâmpada, de Aladim. A escolha parecia se encaixar muito bem.
Câmera, ação!
Faltava só o mais importante: fazer! E ainda não estava definido exatamente como. Uma das coisas importantes era o vídeo ser feito em casa, então achamos que seria importante que se mostrasse mais de um lugar dentro de casa, que se explorasse esse novo espaço cênico do artista. Portanto, o vídeo não seria apenas em um lugar parado; a dança teria um caminho que eu percorreria, começaria em um lugar e terminaria em outro. A câmera deveria acompanhar a performance ao longo desse caminho. O Leo escolheu fazer um plano sequência, ou seja, um vídeo em um só take, sem cortes, assim tanto a dança quanto o passeio pela casa seria mais fluido. Definimos que a performance começaria na sala e terminaria no quarto; a minha dança seria de improviso mas eu já tinha alguma ideia do que fazer em determinadas partes da música, como no começo e no final. Não fizemos nenhuma iluminação especial; nesse sentido, o vídeo é bastante cru, “caseiro”, mais um aspecto para ressaltar o caráter doméstico exigido pelo festival. Definimos o tempo de acordo com a música e onde eu e a câmera deveríamos nos posicionar no decorrer da apresentação. Ensaiamos e gravamos. Mas essa era só a primeira camada. Lembram do Inception? O vídeo teria 2 camadas e faltava gravar a segunda. O resultado dessa primeira, que eu nunca divulguei, trago agora em primeira mão para vocês verem na íntegra aqui no blog:
Antes de definirmos como seria o produto final, não sabíamos como resolver as camadas de vídeos. A princípio a ideia era fazer através da edição; o vídeo final, da segunda camada, mostraria a tela reproduzindo o vídeo original, da primeira camada, depois ele se aproximaria da tela e a imagem se fundiria e reproduziria novamente só a imagem da primeira camada e, depois faria o processo inverso para voltar à segunda camada. Mas o Leo achou que seria mais impactante manter o plano sequência e mostrar só as telas a partir da segunda camada, isso reforçaria o caráter metalinguístico e deixaria mais confusa (propositalmente) a representação da representação (hiper-realidade), já que não estaríamos usando “truques” de edição. Definido isso, ensaiamos novamente as posições e as ações no tempo da música; antes de gravarmos sincronizamos todas as telas que seriam utilizadas: duas televisões, um computador e um celular e por fim, reproduzimos a primeira camada simultaneamente e gravamos. Foram algumas tentativas até conseguirmos uma que consideramos boa.
O resultado final você já conhece, está no vídeo no início desse post. O vídeo foi selecionado pela curadoria do Festival Up e recebemos diversos comentários legais de pessoas que assistiram o vídeo e ficaram confusas ou curiosas sobre como foi feito, mostrando que conseguimos causar o impacto que queríamos.
E é isso, pessoal! Se você leu até aqui, muito obrigada! Espero que você tenha gostado desse post e que ele possa ajudar você ou servir de inspiração para o seu processo criativo na dança. Se você gostou desse post, então compartilha para ajudar a difundir o conhecimento da dança oriental. Sinta-se à vontade para comentar o que você achou do que leu aqui, o que você acha dos vídeos de dança do ventre, se você gosta de coisas mais modernas ou experimentais desse tipo ou ainda de outras linguagens dentro das novas mídias.
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